terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sopro de vida

Frederico me pergunta onde estamos e se ali seria a festa da Bisa. Respondo positivamente, subindo as escadas do casarão colonial avarandado, ainda apreensiva em saber como seria a sua reação. Fomos entrando e dando boa tarde pras pessoas que encontrávamos: velhinhos vendo TV aconchegados em suas poltronas e colchas quentinhas, alguns em suas cadeiras de rodas, enfermeiros, acompanhantes e parentes. Seguimos pelo corredor até o quarto da Bisa, que continuava deitadinha na sua cama, perto da janela, aguardando a chegada do seu vestido de festa.
Há muito tempo gostaria de escrever sobre sua vida, e acreditava que isso aconteceria quando ela se fosse. Mas minha avó tem sido muito mais forte do que se imagina e tem vencido os anos de forma corajosa, serenamente é verdade, mas com uma força inexplicavelmente superior a qualquer entendimento humano. Ela completou 91 anos neste último sábado. Minha tia, aquela que vive e dedica sua vida a cuidar dela, fez uma festa de aniversário lá no Solar, sua residência nos últimos tempos.
Naquela tarde, eu me contive por vários momentos para não chorar desesperadamente. Minha razão - por mais que eu me esforce - não consegue ainda compreender o porquê da vida ter que seguir desta forma e qual o propósito divino para esta tão longa caminhada. Porque uma “nesga” de vida ainda se alonga, com tanta dor, tanto sofrimento – e me questiono, ainda, se existe alguma dor e sofrimento nela, diante do estado de alienação constante desses últimos anos. No meu egoísmo, me pergunto que tipo de comemoração era aquela, se era correto que eu me sentisse realmente feliz por tê-la mais um ano conosco, naquele estado de inércia e ausência de lucidez, quase vegetativo.
O que sei da sua história (e que é parte pregressa da minha) é o que me lembro dos seus relatos e o que ouço, nos bate papos informais com minha mãe e minha tia. Mas seus pensamentos, lembranças e memórias estão todos há muito tempo prisioneiros na sua cabecinha, que ainda exibe a penugem de cabelos finos prateados, e me fazem recordar da minha infância, quando ela usava um shampoo cinza da L’oreal que deixavam seus cabelos lindos.
Ela foi fruto de um amor clandestino da minha bisavó com um árabe, é o que dizem, mas levou o sobrenome do padrasto. A prova da paternidade estrangeira estava em forma das cartas que Salomão a enviava, que mais tarde seriam destruídas pelo enteado. Foi criada por outra família, como rezava o costume nordestino de dar as crianças para viverem com parentes ou amigos. Me lembro dela me contando sobre a única boneca que tivera – um bebê de louça, que em algum momento não tiveram o devido cuidado e deixaram cair e quebrar. Me lembro dela me falar – quando eu já era moça – sobre um tal de Dedé, rapaz por quem ela foi apaixonada na adolescência.  Me lembro dela me levando pra dar arroz pros pombos no Largo do Machado, me lembro do macarrão com frango dos dias de domingo. Me lembro, já no avançar lento e cruel da senilidade, dela sentada na minha cama, remexendo seu tesouro - a sua caixinha de remédios.
Apesar de curiosa, sua história não teve nada de glamour. Casou-se, aos 17, um senhor viúvo de 50 e que tinha um filho de 18. Interesse? Não, meu avô não tinha dinheiro, não tinha posses, não tinha nada. Ele havia sido a única saída para aquela jovem, que não tinha família e vivia de favor na casa do irmão e da cunhada. Logo nasceu minha mãe. Depois, minha tia. Ainda me lembro da forma carinhosa e respeitosa como se referia a meu avô: sempre o chamou de “Seu Ricardo”. Meu tio nasceu, temporão, quando meu avô tinha 72 anos. E uma vez ela me confessou que “Seu Ricardo” só havia a “deixado em paz” após um incidente no banho, quando escorregou, quebrou a bacia e ficou acamado. Mesmo assim, ciumento como era, quem chegasse perto dela se tornava alvo certeiro das suas bengaladas, mesmo em cima da cama. Ela ficou viúva aos 54 anos e mesmo sendo nova, parece que já havia se acostumado com a privação e aceitação da forma em como a vida seguia, e não se casou novamente. Se ela foi feliz? Acho que sim. As pessoas acabam achando a felicidade simples na maneira como a vida é imposta.
Começou com leves esquecimentos, a perda da habilidade motora pra algumas coisas, algumas internações. Depois, a hipocondria, e a tentativa maluca de contenção da doença com novos medicamentos, esquecimentos totais. Diagnosticaram ser Alzheimer. Mas, pelo pouco que sei, Alzheimer não permite a memória recente e ainda me lembro dela chamando pelo Frederico, após os dias de visita na casa da Bisa, onde ele, ainda de fraldas, subia pela cama e por cima dela, para enchê-la de beijos e carinhos.
Frederico volta do salão de almoço com as mãos cheias de salgadinhos. Pouco tempo e ele já se sente em casa, conversa com os outros velhinhos, deitando na cama deles, e sai pela porta do quarto, aventurando-se atrás da “tia-dinha” pelos corredores do Solar. Minha mãe, o vestido e o bolo chegam, e minha avó é arrumada pra festa: vestido florido, cabelos penteados, sapatinhos de lã, como aqueles de bebê. A colocam na cadeira de rodas e é levada para o salão, onde um senhor também de cadeira de rodas é nosso DJ. As músicas variam de várias versões do “parabéns a você” aos mega-hits de Chiquinha Barbosa – o aniversário da minha avozinha era o acontecimento do dia para todos no Solar.
As perguntas do meu filho são muitas: porque a Bisa faz “assim” com a língua, se ela fazia isso também quando era nova, como ela fazia para passear, como ela pedia pra ir ao banheiro, como ela comia, se ela estava chorando - ao avistar uma lágrima que caía dos seus olhinhos quase sem cílios. “Ela está emocionada, Frederico” - Tia-dinha havia explicado, e depois de outras tantas explicações, ele chega a humilde conclusão de que alguma coisa no cérebro da bisa tinha se quebrado, por isso ela hoje vivia como bebê.
Na hora dos parabéns, a pergunta: “Quem vai apagar a vela, mamãe?”
Respondo: “Você, meu filho.”
E só posso concluir, daquele encontro de gerações, que ao soprar as velinhas dos 91 anos da Bisa, Frederico havia lhe dado toda a energia e alegria da sua juventude e certamente, como num passe de mágica, mais alguns longos anos de vida.